Artigo de opinião:
A responsabilidade do setor de apostas na educação financeira dos brasileiros

Por Caren Benevento, sócia do escritório Benevento Advocacia e pesquisadora do Grupo de Estudos do Direito Contemporâneo do Trabalho e da Seguridade Social da Universidade de São Paulo (USP)

O mercado de jogos de azar e apostas no Brasil vive um momento de transformação. Com a regulamentação de apostas de quota fixa, Lotex e loterias tradicionais, o país estabelece bases para organizar e formalizar um setor que, por décadas, operou em parte na informalidade. No entanto, com a consolidação desse mercado, emerge uma questão crucial: qual é a responsabilidade das empresas em educar financeiramente os seus clientes?

A regulamentação das apostas de quota fixa, também conhecidas como "bets", foi oficializada em 2023 por meio da Lei 14.790/2023, que estabeleceu um marco regulatório detalhado para o setor. No Brasil, os jogos de azar se dividem em duas categorias principais: os lotéricos, como as loterias da Caixa (mega-sena, Lotofácil, Loteca, dupla sena etc.), que são legalmente autorizados, e os jogos considerados "de azar", como cassinos, jogo do bicho, bingo e corridas de cavalos fora dos hipódromos, cuja exploração configura contravenção penal conforme o Decreto-Lei 3688/1941.

A partir de 2025, o mercado lotérico passará a incluir, além das loterias tradicionais, as apostas de quota fixa e a Lotex, popularmente conhecida como raspadinhas, cuja operação será realizada de forma transitória pela Caixa Econômica Federal até que um vencedor do processo de concessão assuma. Esses esforços legislativos buscam organizar um setor que movimenta bilhões de reais, garantindo arrecadação fiscal e mitigando os impactos sociais negativos historicamente associados aos jogos de azar.

Somente no ano passado, mais de 2.000 plataformas de apostas estavam ativas no Brasil, segundo divulgado pelo Ministério da Fazenda. Com o endurecimento das regras, já neste ano 67 operadores foram autorizados a atuar em 2025, sendo que apenas 14 obtiveram autorização definitiva. Essa peneira é fundamental para combater práticas irregulares, mas também revela lacunas no cumprimento das normas, sobretudo no que diz respeito à proteção do apostador.

O endividamento é uma preocupação crescente. Estudo realizado pela Federação do Comércio de Bens, Serviços e Turismo do Estado de São Paulo (Fecomercio/SP) aponta que 77% das famílias brasileiras têm alguma dívida. Ao mesmo tempo, uma pesquisa nacional da PwC Strategy& revela que os gastos com apostas esportivas já superam outras categorias de despesas, como lazer, cultura e produtos pessoais, e começam a impactar diretamente orçamentos destinados à alimentação. Esse quadro reflete um cenário preocupante: sem a devida educação financeira, o acesso irrestrito às apostas pode intensificar ciclos de endividamento, comprometendo o bem-estar econômico das famílias.

Embora o governo tenha criado um arcabouço regulatório detalhado, a responsabilidade pela promoção de práticas saudáveis de consumo recai, em grande parte, sobre as empresas. Algumas plataformas já oferecem mecanismos para limitar perdas e tempos de conexão, mas muitas ainda tratam essas ferramentas como um formalismo. É preciso ir além: campanhas de educação financeira devem ser centrais nas estratégias de marketing e comunicação dessas empresas.

Além disso, as exigências regulatórias para as empresas operarem no Brasil se aproximam de padrões de governança corporativa de empresas de capital aberto. A obtenção de licenças exige um pagamento inicial de R$ 30 milhões e investimentos adicionais para cumprir requisitos como certificação técnica, armazenamento de dados no Brasil, auditorias de segurança e mecanismos rigorosos de governança e compliance digital. Elas devem manter backups de dados por no mínimo cinco anos, operar com domínio nacional (.bet.br) e garantir transparência em transações financeiras. Esses parâmetros reforçam a necessidade de altos padrões de responsabilidade social e de gestão.

No nível macro, as apostas já começam a impactar o cenário fiscal e regulatório do país. Com a exigência de que operadores adotem domínios nacionais, utilizem certificações ISO e, utilize somente instituições nacionais para transações financeiras, o setor está se ajustando a padrões internacionais de compliance. No entanto, no nível micro, o impacto real só será positivo se os apostadores forem protegidos contra os riscos financeiros inerentes ao jogo.

É essencial que plataformas invistam na construção de uma relação de confiança com seus clientes. Isso inclui a implementação de políticas claras de autoexclusão, mecanismos de alerta para controle de gastos e até mesmo redes de apoio psicológico para casos de dependência. Além disso, a adoção de práticas educativas, como vídeos e workshops sobre gerenciamento financeiro, pode ajudar a transformar o mercado em uma força que contribui para o bem-estar dos consumidores.

O mercado de apostas no Brasil tem potencial para se tornar um dos mais organizados e lucrativos do mundo. No entanto, essa transformação só será verdadeiramente bem-sucedida se as empresas abraçarem um papel ativo na educação financeira dos apostadores. A regulamentação é o primeiro passo, mas o sucesso a longo prazo dependerá de como essas empresas equilibram seus objetivos comerciais com o compromisso de proteger e informar os consumidores.

Mais do que cumprir normas, é hora de o setor olhar para o futuro e assumir a responsabilidade de educar financeiramente os brasileiros. Afinal, um mercado que cresce às custas do endividamento da população é insustentável. O verdadeiro jogo responsável começa com a consciência de que os ganhos não podem ser apenas financeiros — eles também precisam ser sociais e econômicos.